O CANTO DO OURIÇO

terça-feira, outubro 10, 2006

ESTE TÊM DE LER

IN JN 03/10/06

Desgaste de lesa dignidade do professor do 1.º ciclo do ensino básico
Bragança dos Santos

Antes de mais nada, para que seja possível fazer a abordagem de um assunto desta natureza, devemos ter consciência, simultaneamente, da importância, por um lado, e, por outro lado, da gravidade de que o mesmo reveste, quer nas suas causas, quer nos seus efeitos, pelo que, para além de termos de encarar a presente matéria com seriedade, objectividade e isenção, nós e os leitores, devem estes, pelo seu lado, se compenetrar, também, de que leccionar no 1.º Ciclo do Ensino Básico é estar sujeito ao exercício aliciante, sim, de uma profissão, fundamentalmente essencial e estruturante, mas, que não deixa de ser, quer queiram quer não, altamente desgastante, de elevado risco, de remuneração simbólica (tudo é pago pelo docente – deslocações, portagens, refeições, dormidas, material escolar, etc.), e que tem vindo a ser, cada vez mais, alvo, em cada dia que passa, do descrédito e preconceito de quem julga, no fundo, poder lucrar com isso mesmo. O tipo de trabalho desenvolvido pelo professor do 1.º Ciclo do Ensino Básico, como se deveria perceber, não tem nada que ver com as atribuições dos bombeiros, mineiros ou de outros profissionais, igualmente sujeitos a certo tipo de "torturas laborais", mas, tal como eles, os professores estão também sujeitos aos arbítrios e subjectividades de certos aprendizes de "opinion makers", por força de um conjunto de razões, das quais sublinho as seguintes: ignorância; maledicência; diletantismo de algibeira; "estupidez natural" ou primarismo. Concretamente, os professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico, têm vindo a ser confrontados, gradualmente, com imposições desgastantes, contraproducentes e redutoras, na medida em que têm visado apenas agradar aos pais (seres votantes desta nossa politica… (zinha) caseira), independentemente do alcance daquelas, em termos pedagógicos ou até mesmo didácticos...
Estarão todos conscientes de que cada escola acaba por ser a estação terminal onde desembocam todos os problemas sociais de todos os lares que fornecem meninos a essa mesma escola? Dentro da sala de aula, e durante cerca de 5/6 horas (ou mais) diárias, o docente tem de colaborar na gestão dessas maleitas sociais, de que cada aluno é portador, amparando a criança, mas não podendo distanciar-se das programações, sobre as quais tem de prestar contas perante os pais, conselhos escolares, conselhos executivos, serviços de inspecção, Direcções Regionais de Educação, etc.. Ao professor exige-se, então, o cumprimento do Programa Nacional, mais a leccionação de toda uma série de áreas disciplinares e não disciplinares e ainda o acompanhamento e apoio ao estudo, para lá do horário lectivo das crianças, como se este profissional fosse de pau, podendo e devendo ser, portanto, "pau para toda a colher". Atentem só: enquanto os pais acompanham (deveriam acompanhar) os filhos desde o berço até à idade adulta (mais ou menos durante vinte anos), aos professores exige-se que acompanhem as crianças, em turmas dramaticamente heterogéneas, mas sempre com elementos entre os cinco e os nove anos de idade (idades demasiadamente precoces, nalguns casos, para cumprirem o 1.º Ciclo, digo eu – os resultados falam por si), repetidamente ao longo de trinta anos de serviço – agora o Eng.º Sócrates pretende estender a carreira para quarenta anos de actividade (?!!!!!!!!) —, o que só pode ser uma tarefa incomensuravelmente demolidora, corrosiva e aniquiladora.
Ao longo dessa mesma carreira, o professor vai envelhecendo, isto é, vai se distanciando, progressivamente, da faixa etária fixa dos seus alunos.
Fazendo as "contas" por aproximação, o tal professor do 1º Ciclo, ao longo da sua carreira, de acordo com a legislação vigente, contactará com cerca de 25 x 40 = 1000 (um milhar) de alunos. Isto se atribuirmos aos factores, respectivamente, o nº médio de alunos por sala e os anos de serviço do docente.
Alguém é pai, mãe ou avó de meninos durante quarenta anos, como se tivessem parado na faixa etária balizada entre os 5 e os 9 anos de idade??? Alguém tem cerca de 1000 filhos ou netos, PERMANENTEMENTE, entre essa mesma faixa etária?
O professor de 1º Ciclo contacta sempre com criancinhas que integram o mesmo leque de idades (dos 5 aos 9), ao longo de quatro intermináveis décadas.
Os pais, pela parte que lhes toca (?!), só se encontram com os filhos durante escassos lapsos de tempo, ao longo da rota do sol. No regime de monodocência vigente (professor único), o professor está 5 ou 6 horas por dia (conforme os casos), na companhia dos filhos e netos da população que demanda as escolas; portanto, o docente ultrapassa, em muito, o tempo de contacto com as crianças em questão, comparativamente com o que acontece com os seus progenitores ou até os seus familiares mais chegados. Ainda mais: Por que razão se constituem turmas com um número de alunos superior ao legalmente previsto? No chamado sistema de fase única, quem fica beneficiado com turmas que englobam vários anos de escolaridade, a não ser o mero economicismo negativista? Sendo praticado o ensino inclusivo, a generalidade dessas turmas engloba crianças com problemas vários, quer a nível mental, quer a nível cognitivo ou mesmo físico, exigindo do professor um acompanhamento individual, directo, específico e sempre afectuoso. Nestes últimos anos, os apoios do Ensino Especial, têm sido cada vez mais reduzidos em horas semanais, alterando-se, inclusivamente a noção do próprio conceito relativo à dependência e limitação dos alunos. Tendo em conta que em cada ano de escolaridade há sempre os subgrupos, então essa heterogeneidade, obriga a que o professor se veja na necessidade de colocar em acção, com maior ou menor dificuldade, a dinâmica de trabalho de grupo.
O perfil psicológico da criança entre os 5-9 anos aponta ainda para a factual constatação do egocentrismo (considera-se ainda o centro do mundo), sendo a chamada "fase do grupo" uma característica da adolescência Como gerir então esta multiplicidade de actividades, simultaneamente, com competência, eficácia e o afecto que todas as crianças nos suscitam e a que têm legitimamente direito??!!! A quem serve a estratégia obtusa e contraditória dos prolongamentos ao fim do dia, quando professores e alunos já sentem esgotadas as suas capacidades de atenção e concentração? Que vem a ser isto dos trabalhos de casa passarem a ser efectuados na escola, logo a seguir às aulas, depois de um simples intervalinho de 15 minutos???!!!! Serão por acaso as crianças comparáveis a chouriços, podendo ser enchidos sob pressão e atados no final com um nozinho???!!! Os professores dos outros Ciclos, com a progressão na idade e carreira, vão reduzindo o seu horário semanal. O professor do 1º Ciclo, porque carregam sobre os ombros a responsabilidade de leccionarem todas as áreas disciplinares e não disciplinares, para além de tudo o resto, mantém a sua carga horária semanal durante todas as décadas ao longo das quais a carreira se estende. Para agravar a situação, o presente governo deixou de considerar a realidade do 1.º Ciclo como sendo especial, ou seja, com direito à aposentação aos 32 anos de serviço e 52 de idade ou aos 30 anos de serviço e 55 de idade, muito embora tenha aumentado as exigências e diminuído drasticamente os direitos estatutariamente consagrados.
No último ano lectivo, eu – fala agora a colega Maria de São Martinho — com 52 anos de idade e cerca de 30 de serviço, em vez de ver reduzida, vi AUMENTADA a minha carga horária semanal na presença de alunos. Duas vezes por semana, após 5 horas de actividade árdua, gerindo uma turma com 8 alunos de 3ºAno e nove de 4ºAno, sendo um deles com NNE (necessidades educativas especiais), fui confrontada com a obrigatoriedade de continuar a dinamizar actividades de prolongamento escolar, junto de cerca de uma dúzia de meninos do Jardim Escola + cerca de meia dúzia do 1º ciclo, de diferentes anos de escolaridade.
Alguém se importou se eu saía da escola, na vertical ou de rastos ???!!!
Enquanto ISSO me acontecia, as amas (pagas pelos pais) folgavam, e as avozinhas, idem, idem... É a total desagregação da ambiência familiar…
Se a sociedade quer ou precisa que a escola seja o depósito diurno de crianças, então quem de direito, terá de criar condições, espaços e pessoal competente para ocupar os infantes nesses tempos. Porque me impõem, mais essa sobrecarga na já tão sobrecarregada carga do professor do 1º Ciclo??!!! Hoje em dia, os professores do 1.º Ciclo são já licenciados, não compreendendo eu a razão pela qual continuam a ser tratados como mentecaptos, desprezíveis e "primários" pela tutela, pela população e pelo sistema educativo nacional.
Porquê continuar a desvalorizar e a incompreender, o trabalho que é basilar em qualquer sociedade, e que deve poder ser exercido com dignidade pelo professor do 1º Ciclo??!! Felizmente que vai havendo raras, mas honrosas excepções, na pessoa dos poucos que sabem observar, analisar e compreender uma tão candente como factual realidade que muitos teimam em ignorar ou até explorar, visando objectivos inconfessáveis. O DESGASTE, esse, é real e progressivo e vai minando, não só o sistema, mas também, com maior ou menor intensidade, compreendido ou menosprezado pela população em geral, não interessa, tem vindo a fazer inúmeras vítimas na pessoa dos professores que, infelizmente, não lhe conseguem escapar… Na prática, perdemos todos e, Portugal, vai se tornando cada vez mais frágil empobrecido e vulnerável.
Nota: o presente artigo integra o testemunho, sentidamente amargurado, da colega do 1.º Ciclo, Maria de São Martinho, 52 anos de idade e cerca de 30 de serviço e mãe; um dos filhos com 21 anos é, desde o nascimento, 100% dependente.